Aritana era o cacique dos yawalapitis, etnia estabelecida no norte de Mato Grosso, e militou a vida inteira pela causa indígena. Quando criança, ele acompanhou o trabalho dos irmãos Villas-Boas pela criação do Parque Nacional do Xingu, um dos maiores territórios indígenas do planeta. No fim dos anos 1970, foi a inspiração da novela Aritana, da TV Tupi, filmada no Xingu e estrelada pelo casal Carlos Alberto Riccelli e Bruna Lombardi. Em 1987 e 1988, participou das mobilizações em Brasília para que a nova Constituição previsse direitos para os povos originários.
A militância do cacique Aritana chegou ao fim na quarta-feira passada (5), quando ele morreu, aos 71 anos, vítima da covid-19. Não foi um caso isolado. A pandemia de coronavírus já havia matado outros líderes indígenas importantes, como Nelson Mutzie Rikbaktsa, de 48 anos, Dionito José de Souza Macuxi, de 52 anos, Amâncio Ikon Munduruku, de 60 anos, e Paulinho Payakan, de 67 anos. O cacique Raoni, de 89 anos, também foi infectado, mas conseguiu se curar após dez dias de hospitalização.
Apesar de boa parte dos indígenas viverem em comunidades que teoricamente estariam a salvo da pandemia, localizadas em pontos remotos e dispersos pelo território nacional, a doença chegou até eles e os atacou com força total. Até este momento, o novo coronavírus infectou 23 mil indivíduos e matou perto de 650, de acordo com os levantamentos constantemente atualizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Desde o início da pandemia, em março, quatro indígenas têm morrido no Brasil, em média, todos os dias.
Em doentes e mortos pela Covid-19, como comparação, a Áustria como um todo contabiliza números absolutos semelhantes aos dos indígenas brasileiros. Quando se consideram os números proporcionais, porém, a situação destes últimos se mostra muito pior. A população austríaca é dez vezes maior do que a população indígena do Brasil, o que revela que a doença é mais controlada lá e mais devastadora aqui.
— Se o governo brasileiro já nega a gravidade da pandemia para a população como um todo e não oferece a assistência necessária, no caso dos indígenas a omissão e o descaso são infinitamente maiores. A população indígena corre o risco de ser dizimada pelo coronavírus — afirma o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira. O Cimi é vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Por conta própria, alguns povos ergueram barreiras nas estradas que levam a seus territórios, na tentativa de impedir que pessoas não indígenas entrem e introduzam o vírus nas comunidades. A Fundação Nacional do Índio (Funai) se opôs a essa medida de autoproteção e criou uma campanha em que diz que “o Brasil não pode parar”.
Organizações não governamentais (ONGs) que defendem as populações indígenas afirmam que o atendimento de saúde nem sempre é satisfatório. O número de médicos, segundo elas, caiu significativamente no ano passado, quando o governo federal acabou com o Mais Médicos. Esse programa contava com a participação de mais de 8 mil médicos cubanos, que deixaram de atender pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O atendimento dos indígenas doentes se torna particularmente complexo quando a aldeia fica longe dos centros urbanos. Se existe algum posto de saúde nas proximidades, ele normalmente está equipado para cuidar apenas de doenças mais simples, que não tenham complicações. Não é o caso da Covid-19. Para o indígena ser internado num hospital, pode ser necessário enfrentar uma viagem em barco que chega a durar dois ou três dias. No caso das tribos ainda mais afastadas, o contato por avião com a cidade grande pode estar disponível apenas uma vez por mês.
O governo federal nem sequer faz a contagem completa dos infectados e dos mortos pela Covid-19 entre os indígenas. Integrante do Ministério da Saúde, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) cuida apenas das populações que vivem em terras indígenas homologadas. Os povos que estão em territórios ainda não regularizados e os que vivem na cidade, portanto, não entram nas estatísticas do governo federal. É por essa razão que a Apib faz o seu próprio levantamento. Para as ONGs, a ausência de estatísticas precisas impede que se desenhe com sucesso qualquer ação de proteção dos indígenas contra o novo coronavírus.
Neste domingo (9), comemora-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Desde que a data foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1995, os indígenas no Brasil nunca estiveram tão ameaçados quanto agora.
— Chegamos ao Dia dos Povos Indígenas numa situação que lembra o período da ocupação do Brasil pelos portugueses, quando milhões foram dizimados por doenças trazidas pelo homem branco, como o sarampo e a gripe. Em todo o continente americano, a história registra as consequências dessa convivência forçada, guiada pela cobiça e imposta pela cruz e pela espada, as principais armas de dominação europeia — diz o senador Wellington Fagundes (PL-MT).
Diante da escalada dos casos de coronavírus entre os indígenas e da falta de ação do Poder Executivo, os Poderes Judiciário e Legislativo tiveram que agir.
No Judiciário, a ação partiu do Supremo Tribunal Federal. Na quarta-feira passada (5), por unanimidade dos ministros, o STF ordenou que a gestão Jair Bolsonaro, entre outras medidas de proteção dos indígenas, forme barreiras sanitárias na entrada de seus territórios, para garantir o isolamento social, e expulse os ocupantes ilegais dessas áreas, por serem vetores em potencial da covid-19.
Ainda de acordo com a ordem do tribunal, o governo tem que criar uma “sala de situação”, uma espécie de central de monitoramento, na qual os indígenas também tenham assento, para avaliar a evolução da pandemia nas aldeias e propor as respostas necessárias.
O STF agiu em resposta a uma denúncia ajuizada contra o governo federal pela Apib e por seis partidos de oposição (PT, PDT, PSB, PCdoB, Psol e Rede).
No Senado e na Câmara dos Deputados, a principal medida foi a aprovação, em junho, do projeto de lei da deputada federal Professora Rosa Neide (PT-MT) que estabelecia uma série de medidas a serem tomadas pelo governo federal a favor dos indígenas durante a pandemia. Entre elas, estavam o pagamento de auxílio emergencial, o acesso universal a água potável, a distribuição de cestas básicas e produtos de higiene e limpeza, a abertura de leitos hospitalares específicos para essa população, o registro da raça de todos os doentes atendidos pelo SUS e a visita de equipes multiprofissionais de saúde indígena treinadas para atuar especificamente contra a covid-19.
O presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei em julho, mas vetou diversos artigos considerados imprescindíveis pelos parlamentares. O vice-presidente Hamilton Mourão argumentou, por exemplo, que o indígena não precisa receber água potável do poder público, pois “se abastece da água dos rios que estão na sua região”. Senadores e deputados avisaram que votarão pela derrubada desses vetos quando eles forem analisados pelo Congresso Nacional.
Por causa dos vetos, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que preside a Comissão de Meio Ambiente do Senado (CMA), apresentou uma denúncia contra Bolsonaro ao relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os direitos dos povos indígenas, José Francisco Cali Tzay. Contarato afirma:
— O que estamos vendo e o que as lideranças indígenas denunciam é uma tentativa de genocídio. Contamos com a pressão internacional para fazer Bolsonaro assumir o socorro estatal vital às populações mais vulneráveis do país.
A situação dos indígenas fica ainda mais delicada quando se considera que, em geral, têm um modo de vida eminentemente comunitário. Eles, por exemplo, compartilham utensílios domésticos e dormem em grandes grupos dentro da mesma maloca, que não costuma ter janelas. Uma vez que a covid-19 chega a uma aldeia, a sua disseminação costuma ser rápida.
Outro ponto é a pobreza. Como existem diversos indígenas na miséria, especialmente os que moram na periferia das cidades e os que ainda não tiveram suas terras regularizadas e vivem de forma precária na beira de estradas, eles acabam tendo pouco ou nenhum acesso ao saneamento básico e à saúde pública. Tornam-se, portanto, vítimas fáceis da pandemia.
O uso do termo “genocídio” não é exagerado. Considerando que, no Brasil, muitos grupos indígenas são compostos de alguns poucos indivíduos, basta que o novo coronavírus se instale entre eles para que o povo inteiro desapareça para sempre.
Na quinta-feira (6), a comissão do Congresso que fiscaliza a atuação do governo federal no combate à pandemia, presidida pelo senador Confúcio Moura (MDB-RO), questionou em audiência pública representantes da Funai a respeito da situação dos indígenas. Eles disseram que, ao contrário das acusações, o governo federal vem, sim, atuando para proteger as comunidades. Afirmaram, por exemplo, que já foram distribuídas 383 mil cestas básicas e 61 mil kits de higiene e limpeza, além de máquinas de costura para que as comunidades indígenas possam produzir suas próprias máscaras. Disseram também que o governo agora está apoiando a formação de barreiras sanitárias nas entradas dos territórios.
O senador Confúcio Moura diz:
— O massacre dos índios começou há 500 anos, quando os europeus chegaram com suas doenças. Depois, os índios foram escravizados. Houve o genocídio cometido pelos bandeirantes. Hoje, eles continuam sendo destruídos. São vítimas dos conflitos fundiários, são mortos por pistoleiros a serviço de grileiros, garimpeiros e madeireiros. São vítimas ainda da negligência do poder público. É uma negligência que não é nova. A eles é negado o direito às suas terras tradicionais. Vivem em constante insegurança, amedrontados. Já passou da hora de obedecermos à Constituição e protegermos de fato as populações indígenas. Temos uma dívida histórica com eles.
Fonte: Agência Senado