São muitas as profissionais de imprensa que trabalham em coberturas esportivas no Brasil, a maioria no futebol. Esse número cresceu bastante nos últimos anos, assim como as manifestações preconceituosas de gênero voltadas contra elas, o que é fácil de notar em dias de jogos nos estádios, quadras e demais locais de atividade dos atletas.
Por causa disso, um grupo criou um vídeo-manifesto “DeixaElaTrabalhar” que em menos de 24 horas já recebeu centenas de milhares de visualizações em redes sociais. Essa ação se deu depois da repercussão da agressão sofrida pela repórter Bruna Dealtry, do Esporte Interativo, em 14 de março, quando um torcedor do Vasco tentou beijá-la à força no momento em que ela fazia uma transmissão ao vivo em São Januário.
Outro incidente também intensificou a reação das jornalistas. Envolveu Renata Medeiros, da Rádio Gaúcha, vítima de ofensas sexistas que partiram de um torcedor, pouco antes do jogo entre Grêmio e Internacional, dia 11, no Beira-Rio.
Em defesa do respeito ao trabalho de cada uma delas – tanto no ambiente esportivo, como nas redações e no contato direto com os colegas jornalistas -, o grupo planeja visitas ao Ministério Público, Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e ao Juizado Especial Criminal (Jecrim), que atua em estádios, a fim de discutir medidas e cobrar ações que penalizem os autores das agressões.
Para o presidente da Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro (Acerj), Eraldo Leite, a iniciativa das jornalistas pode ser o primeiro passo para “dar um fim” no que ele considera uma “estupidez inadmissível”. “O jornalismo esportivo, hoje, é repleto dessas profissionais. Têm de ser respeitadas. O ambiente do futebol deixou há tempos de ser predominantemente masculino.”
Em contato com Bruna Dealtry, a Acerj lhe ofereceu apoio jurídico e institucional e aguarda as medidas que ela vai tomar.
O Terra ouviu algumas jornalistas sobre o tema. Veja a opinião delas:
Ana Lúcia Rangel (ex-assessora de Imprensa da CBF)
“Eu até que fui respeitada de modo geral no ambiente esportivo! Acho que por eu naquela época – 1998 a 2002 na CBF -, já ter 40 anos, fora da faixa etária alvo dos assediadores que, no Brasil, preferem as novinhas! Mas houve casos, sim, nenhum intimidador, alguns até engraçados, como o de um episódio no México, onde disputamos a Copa das Confederações, e recebi um telefonema no quarto do hotel de um sujeito me fazendo galanteios em espanhol. Morri de rir e desliguei o telefone! Também lembro de um certo árbitro de futebol, que sempre me dizia uma gracinha achando que estava me elogiando, mas era inoportuno e nada elegante. Mas a pior forma de assédio era o moral, o preconceito, o fato de ser mulher num ambiente masculino. Havia uma preocupação por exemplo de que eu não ficasse hospedada no mesmo andar dos jogadores nas concentrações, nos hotéis, e de que eu não circulasse por esses andares. A discriminação era em dobro: pressupõe que sou uma Maria Chuteira e ainda limita meu trabalho. É interessante sobretudo essa dicotomia: o futebol é um fator determinante na formação social e cultural brasileira, está presente em todas as casas, escolas, praias, praças, ruas, mas continua a ser um território predominantemente masculino, ainda não completamente permitido à mulher.”
Camila Carelli (repórter da Rádio Globo-RJ)
“A gente resolveu fazer uma coisa mais prática depois do que aconteceu com a Bruna e a Renata. Fomos adicionando as meninas num grupo criado no Whatsapp, tentando mobilizar o maior número possível. Legal nisso é que várias delas foram pedindo para participar do grupo, antes mesmo de serem convidadas. Sobre o vídeo, todo mundo participou do processo de elaboração. Estamos juntas e não vamos mais aceitar caladas essas agressões. É preciso que as pessoas se conscientizem disso.”
Daniela Lameira – (assessora de Imprensa do STJD)
“O futebol também é para mulheres. Não queremos ouvir elogios pela forma física, gracinhas ou qualquer outro comentário machista. Queremos exercer nossa profissão da melhor forma. Queremos respeito!”
Gabriela Moreira (repórter e colunista da ESPN)
“Só quem passa por isso sabe o que significa. Eu já fui ofendida da forma mais vulgar possível por 40 minutos seguidos e com os policiais ali, assistindo a tudo, sem nenhuma reação. Se um torcedor chama alguém de macaco, ele é detido na hora – e tem que ser mesmo e responder pelo crime. O que nós queremos é que esse tratamento seja extensivo às vítimas das discriminações de gênero. Vamos traçar estratégias de diálogo com o Ministério Público, STJD, Jecrim para avançar na discussão. Queremos medidas práticas.”
Marilene Dabus (primeira repórter a cobrir futebol no Brasil)
“Comecei a escrever sobre futebol quando as mulheres sequer frequentavam os campos. E foi com alarde do Samuel Wainer, dono da Última Hora. Menina zona sul, bonita, rica e instruída. Não havia espaço nesse contexto para assédios, os jogadores eram humildes, os cartolas menos instruídos e atônitos e os coleguinhas não entendiam mais nada. E foi brincando e mostrando meu talento que vinguei no meio masculino sob a proteção dos amigos João Saldanha, Fernando Horário, Sandro Moreira, e muito mais. Fui um caso isolado e ninguém se meteria a fazer bobagem, apenas o diretor do Botafogo, dono de açougue, que mandou de presente uma peça de filet mignon e eu devolvi sob os protestos do meu fotógrafo, que não se conformou (risos) …
Mas abri portas para as mulheres em todos os veículos, elas que só escreviam sobre esportes olímpicos. Eram os anos 60 e o mundo mudou. As mulheres indefesas ainda se submetem ao machismo dominador caladas. São o sustento da casa e dos filhos e os rapazes continuam a serem criados pelas mães com a noção do macho que pode tudo. E eles ainda acreditam. Cadeia neles.”
Mariucha Moneró (ex-repórter do Jornal do Brasil, primeira profissional de jornal a cobrir uma Copa do Mundo)
“O que tem ocorrido é um absurdo. Acho ótimo esse movimento. Na minha época de JB (anos 90) até que não passei por tantos problemas por ser mulher. Nos fins de semana, eu costumava fazer a crônica dos jogos e dar nota de 0 a 10 pela atuação de cada um. Nunca me esqueci de um bate papo que ouvi um dia, uma segunda-feira, num Café na zona sul do Rio. Uns caras na mesa ao lado comentavam, surpresos, que uma mulher havia sido a responsável pelas notas dadas aos jogadores numa partida importante da véspera. Então, um deles me saiu com essa: “Será que Mariucha é o codinome de algum repórter lá do JB?” Minha vontade foi avançar neles. Mas eu me contive.”
Marluci Martins (ex-repórter de Esportes de O Dia e do Extra, ex- comentarista do SporTV e da FOX)
“As redes sociais alimentam essas manifestações de violência e encorajam algumas pessoas a falar o que querem. Em vez de canais de interação com o público, para nós passaram a representar um campo aberto ao preconceito e às agressões gratuitas. Anos atrás havia mais respeito. Hoje, se faço matéria crítica, sou ofendida: “Ah, só podia ser mulher. Ah, ela é Vasco. Ah, ela é Flamengo”. Muito boa a ideia de se criar esse movimento. É preciso impor limites.”
Martha Esteves (ex-repórter de O Dia e diretora da Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro (Acerj)
“Eu, como mulher e jornalista esportiva há 33 anos, lamento muito que isso esteja acontecendo no século XXI. Sofria sim, anos atrás, com algum xingamento nos estádios, mas nada além disso. Talvez por ser de imprensa escrita, a minha exposição era menor. Hoje, essas meninas mais novas, frequentes em programas de TV, passam a ser alvo com mais facilidade. Eu lembro que cheguei a me indispor seriamente com um jogador e quase bati nele por causa de assédio. Não vou dizer o nome, não merece ser citado. Situações que não são fáceis.”
Fone: Terra