Em um frenético leilão de quatro dias no grande salão do Hotel Savoy de Nice, em junho de 1942, compradores deram lances em pinturas, esculturas e desenhos do “gabinete de um parisiense amante da arte”. Entre as 445 peças à venda estavam obras de Degas, Delacroix, Renoir e Rodin.
O administrador que monitorava a venda, nomeado pelo regime colaboracionista francês de Vichy, e René Huyghe, curador de pinturas no Louvre, conheciam a verdadeira identidade do amante da arte: Armand Isaac Dorville, advogado parisiense de sucesso. Sabiam também que ele era judeu.
Depois que os exércitos de Hitler invadiram e ocuparam Paris em 1940, o governo de Vichy começou a perseguir ativamente os judeus. Impedido de praticar a advocacia, Dorville fugiu de Paris para a “zona livre” desocupada no sul da França, morrendo lá de causas naturais em 1941.
Huyghe, do Louvre, comprou 12 lotes da coleção de Dorville com fundos do governo em nome dos museus nacionais da França, e as autoridades de Vichy apreenderam os lucros de todo o leilão sob as leis de “arianização” de 1941, que lhes permitiam assumir propriedades pessoais de propriedade de judeus. Dois anos depois, cinco membros da família de Dorville foram deportados e morreram em Auschwitz.
A história completa do leilão de Dorville poderia ter permanecido em segredo se não fosse por Emmanuelle Polack, de 56 anos, historiadora da arte e pesquisadora de arquivos. A chave de seu sucesso na descoberta da procedência de obras que suspeitamente mudaram de mãos durante a Ocupação Nazista foi seguir o dinheiro.
A França tem enfrentado críticas de que está atrás de países como a Alemanha e os Estados Unidos na identificação e devolução de obras de arte saqueadas durante os anos de guerra, e, recentemente, o Louvre começou a mudar essa imagem. Seu objetivo é encontrar os descendentes dos proprietários originais das obras e encorajá-los a recuperar o que é seu por direito.
“Durante anos, coletei dados sobre o mercado de arte durante a Ocupação. E, finalmente, isso é hoje reconhecido como um aspecto crucial da investigação”, disse Polack em entrevista.
“A verdade nos torna livres”, afirmou recentemente Jean-Luc Martinez, diretor do Louvre. Em 2020, ele contratou Polack para as investigações de restituição do museu. “Quando ele me ofereceu um emprego, eu disse a mim mesma: ‘Não, não é possível.’ E então, de repente, eu me vi trabalhando no coração das coleções do Louvre. É realmente uma honra.”
Em março, o Louvre disponibilizou on-line um catálogo de toda a sua coleção – quase meio milhão de obras de arte. Há uma categoria separada para uma minicoleção de mais de 1.700 obras de arte roubadas e devolvidas à França depois da Segunda Guerra Mundial que o museu ainda mantém porque nenhum proprietário legítimo se apresentou. Outros museus franceses possuem várias centenas de obras.
Sua presença ainda é uma vergonha para a França. Depois da Segunda Guerra Mundial, cerca de 61 mil pinturas, esculturas e outras obras roubadas foram devolvidas; o governo do pós-guerra rapidamente entregou mais de 45 mil delas a sobreviventes e herdeiros, mas vendeu milhares mais e manteve os fundos. As que permanecem em museus franceses são às vezes conhecidas como “órfãs”.
Polack trabalha em estreita colaboração com Sébastien Allard, chefe do departamento de pinturas do Louvre, que durante anos pressionou o museu a procurar com mais afinco os proprietários e herdeiros das pinturas “órfãs”, e que no fim de 2017 fez a curadoria de duas pequenas galerias para exibir cerca de 30 dessas obras.
Polack está atualmente pesquisando a procedência de várias dessas pinturas; vasculha os volumosos arquivos do Louvre, catálogos de leilões, galerias de arte e recibos de emolduradores, catálogos raisonnés e correspondências para rastrear como obras de arte mudaram de mãos ao longo dos anos. Ela se concentra na parte de trás das telas, que muitas vezes dão pistas sobre vendas, restaurações e emolduradores que podem levar aos seus proprietários. “O verso das pinturas pode ser muito eloquente”, afirmou. Além disso, começou a estudar catálogos de leilões e documentos da leiloeira Drouot, que abriu seus arquivos para o Louvre em março.
Polack, que cresceu no subúrbio de Saint-Germain-en-Laye, traz sua história pessoal para a missão. Seu avô materno foi deportado e morreu no campo de concentração de Buchenwald; seu avô paterno foi prisioneiro de guerra e suas posses foram saqueadas pelos nazistas. “Ninguém, nem meus avós nem meus pais, nunca falou da guerra. A história foi transmitida por meio do não dito, e não há nada pior que o não dito.”
Ela aprendeu o básico sobre o mercado de arte com seu pai, agente imobiliário que colecionava pinturas e carros antigos e a levava, quando adolescente, a mercados de pulgas e leilões. Depois de ter se especializado em estudos do Holocausto para seu mestrado, Polack lecionou história e geografia em uma escola pública de ensino médio e trabalhou por mais de uma década em conservação e restauração de monumentos.
Fascinada mais pela forma como as obras mudaram de mãos do que pelas próprias peças, ela decidiu escrever sobre o ativo mercado de arte durante a Ocupação. Afirmou, contudo, que sabia que a única maneira de ser levada a sério como pesquisadora era obter um doutorado em história da arte. Em 2017, aos 52 anos, finalmente produziu uma tese de doutorado – que se tornou um livro dois anos depois – sobre o mercado de arte francês durante os anos da guerra. Polack já tinha uma reputação no exterior, como membro de uma força-tarefa internacional na Alemanha, depois da descoberta de cerca de 1.500 obras de Cornelius Gurlitt, cujo pai, Hildebrand, comprava obras de arte para Hitler.
Enquanto trabalhava para a força-tarefa, descobriu a chave da história de Dorville: verificou a parte de trás de um retrato do pintor impressionista Jean-Louis Forain e descobriu uma etiqueta amarelada com um número de item do catálogo de um leilão em Nice. “CABINET d’un AMATEUR PARISIEN”, dizia, sem outras informações sobre a identidade do vendedor.
Intrigada, viajou para a cidade, e descobriu em arquivos públicos os catálogos de venda, as atas de leilão, a identidade do vendedor e os documentos que comprovavam o envolvimento do Comissariado de Questões Judaicas do governo de Vichy. Trabalhando com uma empresa de levantamento genealógico, localizou os herdeiros de Dorville e depois fez amizade com eles.
Quase oito décadas depois do leilão em Nice, suas consequências continuam a assombrar a França, colocando o governo francês contra os herdeiros de Dorville. Estes afirmam que a venda de suas obras de arte foi feita sob as leis antijudaicas dos tempos da guerra, tornando-se um ato ilegal de “espoliação” ou saque. Eles argumentam que, se o governo tivesse lhes dado os lucros do leilão, talvez os cinco membros da família que morreram em Auschwitz pudessem ter encontrado uma maneira de sobreviver.
Polack há muito apoia a posição da família. Em um artigo do “Le Monde” de 2017, ela chamou o leilão de Dorville de “uma das principais vendas de saques cometidos pelos franceses na Segunda Guerra Mundial”.
O governo francês, em contrapartida, confiando em grande parte nas lacunas das provas da organização do leilão, chegou a uma conclusão diferente. Em maio, aceitou as conclusões da comissão que examina as reivindicações de reparação de vítimas das leis antijudaicas durante a guerra, que declarou que o leilão de Dorville foi realizado “sem coerção nem violência”.
No entanto, devido ao envolvimento do Louvre, o governo francês decidiu que as 12 obras compradas pelo museu deveriam ser devolvidas aos herdeiros de Dorville. Ao mesmo tempo, uma vez que o governo não declarou a venda ilegal, vários museus franceses que compraram ou receberam nove obras adicionais do leilão conseguirão mantê-las.
Os herdeiros de Dorville planejam contestar a decisão do governo em um tribunal francês. Corinne Hershkovitch, uma das principais advogadas de arte que representa a família, disse: “Não foram os alemães que fizeram isso. O Estado francês deve admitir que essa venda se encaixa nas leis de ‘arianização’ da França de Vichy. Deve reconhecer que a venda foi forçada e ilegal.”
c. 2021 The New York Times Company