ONU faz proposta para conter o poder do grande capital

Dominante há quase 30 anos, o neoliberalismo não conseguiu cumprir a promessa de prosperidade a partir da ação das forças do mercado sem um controle efetivo pelo Estado, mas foi eficiente na geração de crises e de recordes de desigualdade, endividamento das famílias e queda dos investimentos que assolaram o mundo desenvolvido e as economias em desenvolvimento.

A combinação de políticas de austeridade e controles brandos sobre o sistema financeiro depois do colapso de 2008 piorou o quadro nos dois hemisférios e o impasse persiste, com recuperação fraca e incerta “é a mais lenta entre todas as crises da era moderna” ou, pior que isso, estagnação, quando não recessão, em vários países.

Confiar no funcionamento do mercado sem restrições para uma retomada só agravará o problema, pois a economia mundial está na realidade a anos-luz da liberdade existente nos sonhos neoliberais. O oposto é verdadeiro, pois ela se encontra dominada por um punhado de grandes instituições financeiras e corporações empresariais.

O grupo segue leis próprias e quase não investe nem gera empregos, pois vive principalmente do rentismo, isto é, da obtenção de ganhos proporcionados pela simples propriedade de títulos e patentes, entre outros bens, e de direitos.

Diante do impasse, explicado com abundância de informações no relatório de 2017 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), a instituição propôs aos 193 países integrantes da ONU um acordo mundial para a recuperação da economia e das sociedades assoladas pela crise crônica.

No documento intitulado Beyond Austerity: Towards a Global New Deal (Além da Austeridade: Rumo a um New Deal Global), divulgado em setembro, a instituição postula uma mudança de lógica.

“A agenda neoliberal foi desafiada nos últimos anos. A crise financeira de 2008 foi o desafio mais óbvio, mas também a fraqueza da recuperação pós-crise. Mas você só pode avançar se tiver uma narrativa alternativa. É trabalho de uma instituição como a Unctad elaborar uma agenda alternativa para os formuladores de políticas em nível nacional”, analisou Richard Kozul-Wright, diretor da Divisão de Estratégias de Globalização e Desenvolvimento, no lançamento do trabalho.

O New Deal inspirador da proposta é o mais famoso e bem-sucedido esforço de uma sociedade para se recuperar de uma crise, no caso a Grande Depressão dos anos 1930 nos Estados Unidos. Proposto e liderado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, reformulou a relação entre a economia, a sociedade, as instituições e os seus cidadãos e influenciou o resto do mundo.

“Muitos dos desequilíbrios e desafios da década de 1930 têm seus análogos em desequilíbrios e desafios hoje”, compara Kozul-Wright. “Insistir no caminho atual só aumentará as dificuldades, pois, mesmo quando um país consegue crescer através de um aumento do consumo doméstico, de um boom imobiliário ou de exportações, os ganhos são desproporcionalmente acumulados por uns poucos privilegiados. Ao mesmo tempo, uma combinação de muita dívida e pouca demanda em nível global dificulta a expansão.”

Apesar disso, as elites políticas mostram-se inflexíveis ao insistir que não há alternativa, ecoando o slogan de Margaret Thatcher nos anos 1980.

A ameaça real agora, diz o texto, é a perda da confiança subjacente, da coesão e do senso de justiça, dos quais os mercados dependem para funcionar efetivamente. Sem esforços significativos, sustentáveis ​​e coordenados para reativar a demanda global, reunindo investimentos privados e públicos e aumentando os salários, a economia estará condenada ao crescimento lento ou pior que isso.

“As finanças, que ganharam a liderança na elaboração das políticas, seguiram a ideia de que o governo não é a solução, mas o problema. A desregulamentação, a privatização e a liberalização foram convertidas em mantra político abrangente do mundo hiperglobalizado e, quando as coisas dão errado, como inevitavelmente ocorre, a resposta macroeconômica é sempre cortar – para reduzir os gastos do governo, restringir os serviços sociais e reprimir os salários, mesmo quando a fonte do problema não são gastos dessa natureza. Vimos isso de novo desde a crise de 2008, particularmente nas economias avançadas. E não funcionou. A desigualdade continuou a aumentar”, chama atenção Kozul-Wright.

No mundo atual de finanças conectadas e fronteiras econômicas liberalizadas, nenhum país pode se recuperar por conta própria sem correr riscos de fuga de capitais, colapso cambial e ameaça de uma espiral deflacionária. “O que é necessário é uma estratégia de expansão globalmente coordenada, liderada pelo aumento das despesas públicas, com a possibilidade de todos os países se beneficiarem de um impulso simultâneo a mercados internos e externos”, analisa a Unctad.

O encaminhamento indicado diminuiria o espaço para a próxima recuperação vir a reforçar os abismos estruturais e tecnológicos entre os países, através de termos desiguais de troca, perpetuando assim o subdesenvolvimento no Hemisfério Sul e aumentando a prosperidade no Hemisfério Norte, uma tendência crônica estudada em profundidade pelo economista argentino Raúl Prebisch, o primeiro secretário-geral da Unctad.

À medida que seu status e influência política aumentaram, os financistas promoveram uma cultura de naturalização do seu poder que transitou da justificativa para a celebração das extravagantes remunerações e extração de renda, acusa o relatório.

“Como Keynes reconheceu na sua experiência no período anterior à Grande Depressão do início dos anos 1930, a tendência para uma maior diferença de renda devido ao livre jogo das forças do mercado, combinada à maior propensão à poupança das classes mais ricas, tem seus limites na insuficiência da demanda (subconsumo) e no jogo financeiro excessivo que favorece as atividades de curto prazo, de especulação e de extração de renda em prejuízo dos investimentos produtivos de longo prazo”.

E continua, “além disso, como imaginado mais tarde pelo economista Hyman Minsky, enquanto essas condições podem levar a períodos de prosperidade e (aparente) tranquilidade, um ritmo acelerado de inovação financeira encoraja decisões de investimento ainda mais imprudentes. O resultado é um sistema econômico global cada vez mais polarizado e frágil, em que a instabilidade alimenta e conduz às vulnerabilidades e aos choques.”

Desde o início da hiperglobalização, as finanças tendem a gerar enormes recompensas privadas absurdamente desproporcionais em relação aos seus retornos sociais. Grande parte dessas recompensas é proporcionada pelo rentismo, que é a obtenção de renda a partir unicamente da propriedade e controle de ativos ou de uma posição de mercado dominante, em vez de atividade empresarial inovadora ou implantação produtiva de um recurso escasso.

Os rentistas mais conhecidos são os proprietários de ativos financeiros “títulos do governo, letras financeiras ou imobiliárias e certificados de depósitos, entre outros”, e recebedores dos respectivos juros. As corporações não financeiras também se tornaram, entretanto, adeptas de estratégias rentistas para reforçar seus lucros e aumentar seu poder.

Capturam a renda através de uma série de mecanismos não financeiros, como o uso sistemático de direitos de propriedade intelectual (IPR, na sigla em inglês) para deter rivais. Outro caminho é a predação do setor público, incluindo privatizações em grande escala “que simplesmente transferem recursos de contribuintes para executivos e acionistas” e a concessão de subsídios para grandes corporações, muitas vezes sem resultados tangíveis em termos de aumento da eficiência econômica ou outros ganhos.

Vários casos envolvem, ainda, comportamento fraudulento ou próximo disso, incluindo evasão e elisão de impostos e ampla manipulação do mercado pelos executivos das corporações líderes, visando o seu próprio enriquecimento.

Uma medida aproximada do rentismo é a estimativa, por setor, do “excesso” de lucros corporativos que se desviam dos lucros “típicos”. Sob esse critério, constata-se que os lucros excedentes aumentaram acentuadamente nas últimas duas décadas, passando de 4% dos lucros totais entre 1995 e 2000 para 23% de 2009 a 2015. No caso das 100 maiores empresas, essa participação aumentou de 16% para 40%.

Sob o lobby intenso e a neutralização da regulação promovidos pelas grandes corporações, o alcance e a vida das patentes de sua propriedade foram amplamente expandidos e a proteção proporcionada por esse instrumento foi estendida a novas atividades que anteriormente não eram consideradas áreas de inovação tecnológica, como finanças e métodos de negócios.

As patentes estão sendo concedidas agora também para “inovações” nos métodos de finanças, no comércio eletrônico e no marketing, que não estão ligados a nenhum produto ou processo tecnológico particular, mas envolvem processamento de dados e informações em uma forma puramente eletrônica.

O uso estratégico, em vez do produtivo, das IPR para aumentar os lucros excedentes e manter os rivais à margem tornou-se um modus operandi básico do rentismo. A utilização excessiva de proteção de patentes pelas empresas multinacionais afeta diretamente a dinâmica da inovação em grandes economias emergentes, como Brasil, China e Índia, alerta a Unctad.

“Nas últimas décadas, o aumento acentuado das vendas por afiliadas de corporações dos Estados Unidos de bens de tecnologia relativamente sofisticada (de informação e comunicação, de produtos químicos e de produtos farmacêuticos) nesses três países geralmente foi intimamente associado à forte expansão da proteção de suas patentes”, constatou a instituição.

Os autores do relatório tiveram o cuidado de não sugerir a transposição pura e simples de soluções do New Deal deslocadas do seu contexto histórico, mas preservaram seus aspectos transcendentes. O pacto abrangente lançado nos Estados Unidos na década de 1930 e replicado em outros lugares do mundo industrializado, particularmente após o fim da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu um novo caminho de desenvolvimento que se concentrou em três grandes elementos estratégicos: recuperação, regulamentação e redistribuição.

“Embora esses componentes envolvessem objetivos políticos específicos adaptados a circunstâncias econômicas e políticas particulares, eles criaram emprego, expandiram o espaço fiscal e domesticaram as finanças, uma via comum para o sucesso ao longo desse novo caminho.

Construir um New Deal hoje implicaria recorrer a esses mesmos componentes e, como antes, os Estados precisam de espaço para adaptar políticas fiscais e outras políticas públicas proativas para impulsionar o investimento e elevar os padrões de vida, apoiados por estratégias reguladoras e redistributivas que ataquem o triplo desafio da grande desigualdade, das pressões demográficas e dos problemas ambientais”, explica o trabalho.

Segundo o texto, os desafios específicos da desigualdade e da insegurança no século XXI não serão enfrentados por países que tentam se isolar  das forças da economia global, mas por meio da elevação, quando apropriado, de alguns dos elementos do New Deal de Roosevelt a um nível global consistente com o mundo interdependente de hoje.

O novo acordo deve incluir, segundo a Unctad, o fim da austeridade, o aumento do investimento público com uma forte dimensão social “inclusive com grandes programas de obras públicas” e o aumento da receita do governo. Esta é a chave para o financiamento de um novo acordo global. Uma maior dependência de impostos progressivos, até mesmo sobre propriedades e outras formas de obtenção de renda, poderia ajudar a resolver as disparidades de renda.

A reversão do declínio nas taxas de impostos sobre as empresas deve ser também considerada, mas isso pode ser menos importante do que combater as isenções fiscais e as lacunas e o abuso corporativo de subsídios, inclusive aqueles usados para atrair ou reter investimentos estrangeiros.

Um ponto essencial é colocar um fim no uso dos paraísos fiscais, com auxílio de um controle global que registre todos os proprietários de ativos financeiros. Assim como no New Deal dos EUA, o trabalhador organizado deve ter uma voz mais forte para possibilitar que os salários acompanhem a produtividade.

É indispensável domar o capital financeiro e aumentar significativamente os recursos financeiros multilaterais. Coibir o rentismo é um elemento-chave do New Deal global.

Antes de se posicionarem em relação à proposta da Unctad, políticos e empresários deveriam levar em conta este alerta pragmático da instituição: “Nenhuma ordem social ou econômica é segura se não conseguir uma distribuição justa de seus benefícios nos bons tempos e dos custos em períodos ruins”.

 

Foto: Reprodução

Fonte: Carta Capital


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