A estratégia de editar geneticamente nossas células de defesa para que elas “aprendam” a combater o câncer parece não estar tão longe do alcance dos brasileiros. Aprovada nos Estados Unidos comercialmente no final de agosto, a terapia que promete ser um salto importante na oncologia está na mira de vários centros no país e um deles reuniu condições para trazer a terapia no ano que vem — depois de levar pacientes brasileiros para instituições de excelência fora do país.
Foi o que aconteceu com Márcia D’Umbra, de 50 anos, que venceu um melanoma agressivo após se submeter a este tipo de tratamento em Israel (veja sua história mais abaixo).
Enquanto o Inca (Instituto Nacional do Câncer), público, que tem estudos em cobaias com a terapia desde os anos 1990, busca financiamento para levar a terapia adiante, o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, privado, anuncia que deve fazer os primeiros tratamentos experimentais no Brasil em 2018. O hospital separou uma sala especial para isso e já tem pesquisadores nos Estados Unidos em treinamento. A ideia é ser o primeiro centro de terapia genética do câncer na América Latina.
O investimento do Einstein para começar a terapia por aqui está avaliado em US$ 7 milhões (mais de R$ 22 milhões) — com US$ 2 milhões (cerca de R$ 6,3 milhões) destinados a uma sala especial de esterilização. “É uma estimativa genérica porque, mais importante que a infraestrutura, vão ser os investimentos em pesquisa”, diz Wilson Pedreira, diretor do Centro de Oncologia do Einstein.
Fora do país, o custo dos tratamentos para os pacientes gira em torno de US$ 300 mil (cerca de R$ 945 mil), como mostra detalhamento abaixo.
O Hospital Sírio Libanês e com o A.C Camargo, e outros centros de referência no tratamento do câncer no Brasil, não apresentaram projetos a curto prazo para implementar essas novas terapias. “As barreiras são financeiras e tecnológicas”, disse Yana Novis, coordenadora de onco-hematologia do Centro de Oncologia do Hospital Sírio- Libanês.
A primeira das novas terapias para o câncer que deve chegar ao Einstein é a TIL, indicada para o melanoma. Mais para frente, serão disponibilizados protocolos de CART-CELL, imunoterapia que tem apresentado bons resultados em leucemias. Essas terapias, no entanto, ainda deverão ser regulamentadas por órgãos reguladores e comitês de pesquisa.
De qualquer modo, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, não se trata de anunciar uma terapia longínqua, fruto de um otimismo um tanto precipitado: de fato, a imunoterapia genética, façanha que desde os anos 1980 tem sido apontada como o “sonho” da medicina no câncer, pode ser a diferença entre a remissão e a cura no tratamento de tumores no país.
Trata-se de um salto estratégico muito mais que apenas mais uma novidade em tratamentos. A medicina com a imunoterapia genética tem a possibilidade de fazer com que o corpo “aprenda” a combater o tumor caso ele volte – técnica que é bem diferente de eliminar células cancerígenas por meio de cirurgia ou quimioterapia.
“Essa é uma terapia que ficou quente nos últimos anos porque os resultados em leucemia foram muito promissores”, diz Martin Hernan Bonamino, pesquisador do Inca e coordenador do grupo de câncer da Fiocruz.
“É o mesmo conceito hoje da Aids, o câncer pode deixar de ser letal e ser controlável. As terapias estão caminhando nesse sentido”, diz Wilson Pedreira, diretor do Centro de Oncologia do Hospital Israelita Albert Einstein.
“São as células-soldado do sistema imune que entram em ação contra o tumor”, diz Antonio Carlos Buzaid, oncologista do Einstein e do Hospital Beneficência Portuguesa.
Não à toa o número de estudos clínicos que estão investigando a nova estratégia é alto e, se considerarmos os números de estudos ainda em andamento, a probabilidade de novas descobertas serem feitas nos próximos anos é ainda maior.
Em consulta feita no dia 20 de setembro no clinicaltrials.gov, plataforma que cadastra estudos clínicos em todo mundo, havia o registro de 382 estudos clínicos com CART-Cell, com 195 deles recrutando pacientes e 75 deles completados.
Como qualquer nova terapia, contudo, os desafios também são novos — muitos deles desconhecidos da oncologia até agora.
As principais estratégias
Disponível apenas para alguns tipos de câncer, são três as principais estratégias de terapias celulares: CART-Cell, disponível para leucemia; T CELL “Engendrado”, pesquisada para melanoma e sarcoma; e TIL, usada também para o melanoma. Confira como funciona cada uma delas:
1 – CART-Cell
A estratégia da CART-Cell consiste em habilitar linfócitos T, células de defesa do corpo, com receptores capazes de reconhecer o tumor. O ataque é contínuo e específico e, na maioria das vezes, basta uma única dose.
Indicações até agora: Linfomas e leucemia linfoide aguda (o câncer mais comum em crianças). Nas leucemias em crianças, a taxa de sucesso dessa terapia é alta (superior a 50%, em média).
Onde o processo está mais avançado: Estados Unidos.
Preço: Os processos são experimentais. Nos Estados Unidos, no entanto, é possível pagar para entrar no protocolo. Por lá, a terapia sai por US$ 300 mil (cerca de R$ 945 mil) em média.
2 – T CELL ‘Engendrado’
O processo é parecido com o do CART-Cell. A diferença aqui é que, enquanto a célula de defesa reconhece antígenos (partícula que deflagra a produção de um anticorpo específico) na superfície do tumor, o T CELL engendrado é capaz de reconhecer antígenos mais profundos que são processados e apresentados na superfície da célula cancerosa.
Onde está sendo estudado: National Institute of Health (Estados Unidos).
Indicações com mais sucesso até agora: Melanoma (câncer grave de pele) e Sarcoma sinovial (tumor das partes moles).
Estimativa de custo: Não há ainda. Os resultados são bem preliminares mas há pacientes aparentemente curados com essa técnica.
3 – Terapia ‘TIL’
O processo consiste em retirar o tumor do paciente e extrair as células de defesa (linfócitos T que infiltram o tumor), cultivá-las em laboratório, expandir em grande quantidade e depois reinjetá-las no paciente.
Ao contrário do CART-Cell, não há terapia genética e o processo tende a ser mais seguro (embora ainda seja bem mais complicado que as terapias convencionais).
Onde está sendo estudada: Israel, Holanda e Estados Unidos; no Brasil, o Hospital Israelita Albert Einstein planeja para o próximo ano iniciar os tratamentos dos primeiros pacientes.
Indicação: Melanoma, com taxa de cura em torno de 30% dos casos
Preço estimado: US$ 200 mil em Israel ( cerca de R$ 630 mil)
Um caso de cura
Ava Christianson já tinha passado por várias rodadas de quimioterapia e estava pronta para mais uma. Acabou se tornando um dos casos mais repercutidos de cura pela nova terapia chamada de CAR T-Cell.
O procedimento, de acordo com reportagem do “The Washington Post”, demorou cinco minutos no Centro Clínico dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) — na época, a garota tinha 8 anos e convivia com a doença desde os 4 anos. A remissão da doença começou um mês depois.
O rápido procedimento passado por Christianson é a injeção de suas próprias células T, parte fundamental do nosso sistema imunológico. Elas foram modificadas para rastrear e matar as células tumorais.
Christianson era a paciente teste de nº de 18 do NIH, que ainda é o centro-chefe das pesquisas sobre o novo tratamento. Os resultados positivos direcionaram à aprovação pela FDA, órgão similar à Anvisa dos EUA. A Novartis, empresa que possui a patente, informa que a taxa de remissão nestes casos é, em média, de 83%.
Brasileiros buscam solução fora
Já existem pacientes brasileiros que viajaram para o exterior atrás de uma cura com a terapia. Márcia D’Umbra, de 50 anos, sobreviveu a um melanoma agressivo após se submeter ao tratamento do TIL, em Israel, há 5 anos. “Quando vou ao consultório, o médico brinca: estou quase achando que você está curada”. “Era a única chance que ela tinha”, diz Antonio Buzaid, do Einstein, que ajudou Márcia a conseguir o tratamento em Israel.
“Depois de Israel, não tinha mais o que fazer no meu caso. Era uma situação de total risco”, diz Márcia.
Antes da viagem a Israel, Márcia tentou todos os protocolos clínicos para o tratamento do melanoma no Brasil. Passou por quimioterapia e por medicamentos de ponta disponíveis para a condição, como o ipilunumab. A família também chegou a procurar um tratamento nos Estados Unidos, mas Márcia não correspondia a todos os critérios para entrar no protocolo.
Com o melanoma em metástase, Márcia chegou a ter dois tumores no sistema nervoso central. Cinco anos após a terapia em Israel, ela conta da vida normal que passou a levar, livre dos tumores que tinham se espalhado por seu corpo.
“Quando eu fiquei doente, eu tinha metástase cerebral, eu não podia mais dirigir, eu perdi todo o domínio da minha vida, de tudo. Hoje eu tenho uma vida normal”, relembra.
As dificuldades do tratamento
Apesar de já estar disponível para algumas condições e se revelar promissor, na prática, o processo do tratamento da terapia genética é bastante complexo e desafiador. Por esse motivo, poderá levar algum tempo até que o procedimento esteja disponível para mais tipos de câncer.
Veja abaixo algumas das barreiras ainda a serem vencidas:
Efeitos colaterais: estudo publicado na “Nature Review Clinical Oncology” alerta para efeitos colaterais letais da terapia — como a toxicidade neurológica e o inchaço no cérebro. Uma outra questão é a chamada “síndrome de liberação de citoquinas (SIR)”, resposta imune progressiva que causa sintomas semelhantes à gripe, mas com potencial fatal nos pacientes.
Especificidade: para garantir o sucesso da terapia, os cientistas modificam o linfócito T para que ele seja capaz de reconhecer uma estrutura específica do tumor. Isso é, ao mesmo tempo, o motivo do sucesso e do eventual fracasso da terapia, pois caso essa estrutura utilizada para “ativar” o linfócito não seja de fato específica e, por algum motivo, o paciente tenha a presença desses antígenos em alguma outra parte do corpo, a terapia perde a sua especificidade. Resultado: a célula de defesa também poderá atacar células do corpo saudáveis, uma vez que o linfócito está treinado para reconhecer especificamente essa estrutura e não o tumor por inteiro.
“Esse é um processo muito complexo e é por esse motivo que a terapia não está disponível para mais condições”, diz Antonio Carlos Buzaid, oncologista. “Não é para todo mundo porque ela será desenhada para tumores específicos.”
“Um estudo clínico que testou a terapia para o controle de câncer de mama com antígeno HER 2 acabou não funcionando por esse motivo. Uma paciente que tinha um pouquinho desses receptores no pulmão morreu com o órgão totalmente destruído em horas”.
Precocidade: de acordo com Yana Novis, coordenadora de onco-hematologia do Centro de Oncologia do Hospital Sírio- Libanês, ainda não há tempo suficiente em testes para avaliar os efeitos do tratamento a longo prazo no corpo humano.
“Muito importante quando se mexe com engenharia genética é tentar entender o que esse tipo de terapia pode, quem sabe, trazer de impacto no futuro”, disse.
“Os estudos são todos precoces e os pacientes precisam ser acompanhados em um período de tempo mais longo. Precisamos ver se, além de trazer a cura, podemos trazer algum outro impacto na vida do paciente”, explicou.
“Isso porque quando você está ativando todo um sistema imune pra combater um câncer, você não tem tanto controle sobre ele. É uma preocupação que todos têm com a terapia CAR-T. Pode ser que não aconteça nada, mas pode ser que esse sistema imunológico desregulado por nós para curar uma doença possa causar outra no futuro”, aponta.
Logística: Atualmente, as terapias celulares estão sendo voltadas especificamente para cada paciente. “Isso é um desafio logístico importante, já que as células têm que ser transportadas, modificadas e devolvidas. O reparo leva de 20 a 30 dias”, relata o oncologista do Inca.
Novo x convencional
Na forma convencional, o tratamento dos cânceres sanguíneos é feito com quimioterapia. Já no caso de câncer com órgãos sólidos, de acordo com o oncologista Márcio Paes, pode-se fazer uma cirurgia para a retirada do tumor e também usar a radioterapia.
“Realmente é um tratamento ainda muito tóxico. Cai o cabelo, causa fraqueza, náuseas. A radioterapia pode dar uma sensação de queimadura e fadiga”, explica, sobre os métodos convencionais.
Por outro lado, o médico diz que o mecanismo das novas terapias pode causar um efeito inflamatório porque o corpo “luta” contra si mesmo.
“Para os tratamentos novos, há uma expectativa muito boa de que possam causar poucos efeitos colaterais. Mas há riscos. Pode haver reações graves que podem levar o paciente à UTI. O efeito é uma reação inflamatória grave, mas sem queda de cabelo, por exemplo”.
“É um tratamento menos tóxico e com uma taxa de resposta positiva maior”, completa.
Regulamentação
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) informa que não houve um pedido formal para o uso da terapia genética no Brasil. Com isso, as terapias celulares seriam aplicadas em caráter experimental – nesse caso, sob a supervisão do Conep (Comitê Nacional de Ética em Pesquisa), que deve aprovar o protocolo em que cada terapia será utilizada.
Para deixarem de ser experimentais, os serviços deverão pedir aprovação na Anvisa e também passar pela Comissão de Novos Procedimentos do Conselho Federal de Medicina.
Além disso, mesmo quando aprovadas, as terapias celulares só serão usadas em pacientes que não responderem aos tratamentos tradicionais, já que se trata de um processo mais invasivo e extremamente complexo.
Preços e o desafio para o SUS
Os preços para terapia celulares fora do país estão avaliados em US$ 300 mil (cerca de R$ 945 mil) em média — um valor que tem por base o preço do transplante de medula óssea.
Segundo Martin Bonamino, do Inca, apesar de aparentemente altos, os custos da terapia não estão tão fora do conjunto de terapias mais modernas para o câncer — medicamentos como o “Trastuzumabe”, por exemplo, terapia biológica usada para o tratamento do câncer de mama, tem um custo que varia entre R$ 20 a 30 mil mensais.
Ainda, a terapia genética teria uma vantagem quanto ao número de sessões necessárias: o trastuzumabe geralmente é usado por 18 meses; já a maior parte das terapias celulares em andamento, tem potencial para serem utilizadas uma única vez.
Bonamino indica que o maior desafio será a chegada dessas terapias no sistema público. Para serem ofertados no SUS, diz ele, uma alternativa seria a fabricação dessas terapias no Biomanguinhos (laboratório público ligado à Fiocruz). “É fundamental que a gente tenha a capacidade de também produzir esses tratamentos por aqui”, diz.
Foto: Reprodução
Fonte: G1
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