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Quando era estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Pequim em 1978, Li Keqiang mantinha os dois bolsos de sua jaqueta recheados de papéis manuscritos. Segundo um ex-colega de classe, uma palavra em inglês era escrita de um lado e a versão chinesa correspondente, do outro.

Cresce na China o movimento contra a língua inglesa e contra a influência ocidental em geral, algo que muitos chineses veem como um distanciamento de sua abertura para o mundo. (Jialun Deng/The New York Times)© Distributed by The New York Times Licensing Group Cresce na China o movimento contra a língua inglesa e contra a influência ocidental em geral, algo que muitos chineses veem como um distanciamento de sua abertura para o mundo. (Jialun Deng/The New York Times)

Li, agora primeiro-ministro da China, fazia parte da mania chinesa de aprender inglês. Uma revista chamada “Learning English” vendeu meio milhão de assinaturas naquele ano. Em 1982, cerca de dez milhões de famílias chinesas – quase o equivalente ao número de chineses proprietários de um aparelho de TV na época – assistiram a “Follow Me”, programa de ensino de inglês da BBC com frases como: “Qual é seu nome?” “Meu nome é Jane.”

É difícil exagerar o papel que o inglês desempenhou na mudança do cenário social, cultural, econômico e político da China. A língua é quase sinônimo de reformas e políticas de abertura no país, que transformaram uma nação empobrecida e fechada na segunda maior economia do mundo.

Por isso, foi um choque para muita gente quando as autoridades educacionais em Xangai, a cidade mais cosmopolita do país, no mês passado proibiram as escolas primárias locais de realizar exames finais de língua inglesa.

Em linhas gerais, as autoridades chinesas dizem estar diminuindo a carga de trabalho dos alunos em meio a um esforço para aliviar os encargos sobre as famílias e os pais. Mesmo assim, muitos chineses interessados em inglês não podem deixar de ver a decisão de Xangai como uma medida contra a língua e contra a influência ocidental em geral – e mais um passo no distanciamento da abertura para o mundo.

Muitos chamam o fenômeno de “marcha à ré”, ou o Grande Salto para Trás da China, alusão à desastrosa campanha de industrialização do fim dos anos 1950 que resultou na pior fome criada pelo homem em toda a história da humanidade.

No ano passado, a autoridade educacional chinesa proibiu as escolas primárias e secundárias de usar livros didáticos do exterior. Um conselheiro do governo recomendou este ano que o vestibular anual do país parasse de testar o inglês. Novas restrições recentes a empresas de aulas particulares extraescolares, que ensinam inglês há anos, as prejudicaram.

Livros escritos em inglês ou traduzidos também são desencorajados nas universidades, especialmente em assuntos mais sensíveis, como jornalismo e estudos constitucionais, segundo professores que falaram sob a condição de anonimato. Três deles reclamaram que a qualidade dos livros didáticos autorizados pelo governo foi prejudicada porque alguns autores foram escolhidos por sua antiguidade e lealdade partidárias, e não por suas qualificações acadêmicas.

O presidente da prestigiada Universidade Tsinghua, em Pequim, foi criticado alguns meses atrás por ter enviado a cada novo aluno uma cópia em chinês de “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. Ele escreveu em uma carta que queria que os alunos aprendessem a ter coragem e perseverança. Alguns usuários de redes sociais questionaram por que foi escolhida a obra de um autor americano, ou por que os alunos não foram encorajados a estudar para a ascensão da China.

Em alguns casos, a ortodoxia do Partido Comunista está substituindo textos estrangeiros. As escolas primárias em Xangai podem não estar realizando testes de inglês, mas um novo livro didático sobre “os pensamentos de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era” será leitura obrigatória nas escolas de ensino fundamental e médio da cidade a partir deste mês. Cada aluno é obrigado a fazer uma aula semanal por semestre.

O Partido Comunista está intensificando o controle ideológico e a propaganda nacionalista, esforço que poderia voltar o relógio para 1950 e 1960, quando o país era fechado para grande parte do mundo e campanhas políticas afetavam o crescimento econômico. Um ensaio nacionalista amplamente divulgado recentemente pela mídia oficial chinesa citou “os ataques bárbaros e ferozes que os EUA começaram a fazer contra a China”.

Poucos anos atrás, o governo chinês enfatizava o aprendizado de uma língua estrangeira. “A educação em língua estrangeira na China não pode ser enfraquecida, mas sim fortalecida”, escreveu o jornal oficial do Partido Comunista, o “Diário do Povo”, em 2019. O artigo dizia que quase 200 milhões de estudantes chineses tiveram aulas de língua estrangeira em 2018, desde as escolas primárias até as universidades. A grande maioria estava aprendendo inglês.

Durante muito tempo, a capacidade de ler e falar inglês foi considerada importante para obter empregos bem remunerados, oportunidades de estudo no exterior e melhor acesso à informação.

Nas décadas de 1980 e 1990, jovens chineses em muitas cidades se reuniam em “encontros ingleses” para falar uma língua estrangeira uns com os outros. Alguns corajosos, incluindo o futuro fundador do Alibaba, Jack Ma, conversavam com os poucos visitantes estrangeiros de língua inglesa para melhorar suas habilidades de conversação.

Com o desenvolvimento da internet, uma geração de chineses aprendeu inglês com séries de TV como “Friends” e “The Big Bang Theory”.

Alguns empresários ganharam muito dinheiro ensinando inglês ou oferecendo instruções sobre como fazer testes no idioma. A Nova Educação Oriental e Tecnologia, empresa com sede em Pequim, tornou-se um fenômeno cultural de tal ordem que inspirou um filme de sucesso, “Sonhos Americanos na China”. O herói ensinava inglês como muitos chineses aprendem, memorizando, por exemplo, a palavra “ambulance” como a frase “Não posso morrer” em mandarim. (“Au bu neng si.”)

Os principais líderes da China costumavam se orgulhar de seu inglês. O ex-presidente Jiang Zemin recitou o discurso de Lincoln em Gettysburg em sua entrevista em 2000 ao “60 Minutes” e disse a jornalistas agressivos de Hong Kong que suas perguntas eram “muito simples, às vezes ingênuas”. Em 2013, Li fez um discurso parcialmente em inglês em Hong Kong.

O inglês perdeu um pouco de seu brilho depois da crise financeira de 2008. Aparentemente, Xi Jinping, o líder supremo da China, não fala a língua.

Agora, o inglês se tornou um dos sinais de influência estrangeira suspeita, medo alimentado pela propaganda nacionalista que só piorou desde o surto do coronavírus. Como resultado, as ligações da China com o mundo exterior estão sendo cortadas uma a uma.

A autoridade chinesa de controle de fronteiras declarou em agosto que, como parte dos procedimentos de controle da pandemia, suspenderia a emissão e a renovação de passaportes, exceto para ocasiões urgentes e necessárias. Cidadãos chineses de classe média com passaportes vencidos se perguntam se poderão viajar ao exterior mesmo depois da pandemia.

Alguns moradores da cidade oriental de Hangzhou que receberam telefonemas do exterior imediatamente receberam ligações da polícia local perguntando se as chamadas eram golpes. Estudiosos e jornalistas que participaram de um programa de intercâmbio patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores japonês foram chamados de traidores e tiveram de se desculpar três meses atrás.

Para os chineses que tentam manter suas conexões no exterior, pode parecer o fim de uma era. Os preços das ações da New Oriental, a gigante da educação, caíram em julho depois que o governo de Pequim anunciou repressão aos serviços de aulas particulares pós-escola. O anúncio do governo de Xangai atraiu elogios on-line de alguns nacionalistas.

Mas, enquanto a China não fechar suas portas para o mundo exterior, o inglês ainda será visto por muitos como crucial para garantir o sucesso. Depois do anúncio em Xangai, uma pesquisa on-line com cerca de 40 mil respostas descobriu que cerca de 85 por cento dos entrevistados concordaram que os alunos deveriam continuar a aprender inglês de qualquer jeito.

A Covid-19 e as tensões entre os dois países prejudicaram o fluxo de estudantes chineses para as universidades dos EUA. Ainda assim, a Embaixada dos EUA em Pequim anunciou ter emitido 85 mil vistos de estudante desde maio.

Um advogado de Xangai com inclinação nacionalista escreveu em sua conta verificada no Weibo que gostaria que sua filha aprendesse bem o inglês porque o idioma seria útil para o crescimento econômico do país. “Quando os chineses poderiam parar de aprender inglês?”, perguntou ele, e em seguida respondeu à própria pergunta: quando a China se tornar líder nas tecnologias mais avançadas e o mundo precisar segui-la. “Portanto, os estrangeiros podem vir aprender chinês”, concluiu.

c. 2021 The New York Times Company