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são paulo

Um muro de um quilômetro vem sendo restaurado por uma equipe de vinte e quatro pessoas, entre grafiteiros, historiadores, produtores culturais e pessoal de apoio, no extremo leste de São Paulo, em uma das regiões mais antigas e populosas da cidade, o bairro de São Miguel Paulista.

O muro delimita uma antiga fábrica da Nitro Química, parte dela desativada, com outra área ainda em funcionamento. O grafite segue a ordem cronológica da história do bairro, desde os antigos moradores, tribos indígenas, passando pela chegada dos portugueses, as primeiras instalações como a Capela de São Miguel e a Fazenda Biacica, até fatos curiosos, como um jogo em 1957 entre o time de futebol da Nitro Química e o estrelado Santos, incluindo o jovem Pelé que, um ano depois, disputaria sua primeira Copa. Os grafiteiros têm orgulho em ressaltar que o muro é um “museu a céu aberto”.

Os grafites foram feitos em 2016 e agora estão sendo recuperados, quase em um processo de restauro. Boa parte da equipe de artistas permaneceu, caso de Danilo Farias da Silva, que destaca: “Acredito que restaurar do jeito que estamos fazendo é mais difícil do que fazer um novo”. Entre os profissionais tarimbados, estava uma aprendiz, a voluntária Endy Lima Gonzaga que, compenetrada, fazia alguns detalhes de flores e folhagens em meio à pintura da vegetação da Fazenda Biacica. Endy tem uma relação antiga com as artes de rua: já trabalhou como estátua viva e também fez malabares em faróis da zona leste. “A pintura requer tempo, tanto para o ato de fazê-la como para adquirir um estilo, um traço”, ressalta. “Este muro traz a história do Brasil a partir do que aconteceu aqui, em São Miguel Paulista, mas é triste não termos resquícios dos povos originários, dos indígenas, não só aqui, mas no centro de São Paulo também. Além de trazer as cores, este mural valoriza a questão histórica, de trazer o que foi e o que era a região”, completa.

O grafite na quilométrica parede tem os traços comuns aos “desenhos funcionais” dos muros de comércios e de escolas das periferias de São Paulo – afinal, boa parte dos grafiteiros que o faz tira o sustento a partir deste trabalho. É o caso de Cristiano Simões, o Kiki, como assina suas obras. Aliança no dedo e botas cheias de tinta, ele garante: “Já pintei muros de escolas, comércios de todos os tipos por aqui. Tenho São Miguel na veia”. Ele lembra ainda que trabalhou só durante dois anos como repositor em um mercado da região – no restante do tempo, sempre preferiu o grafite. Simões tem uma filha, Sarah, de 6 anos, que às vezes acompanha o pai em alguns trabalhos e já se inicia na arte de brincar com as tintas.

Além da pintura da fazenda Biacica, datada do século 17, entre outros destaques do grande museu a céu aberto, está a estátua da indígena Bartira. Em proporções gigantescas, a personagem mira as diminutas pessoas e carros que passam apressados pela região. Ela está presente apenas na parede e nas recordações dos mais antigos moradores da região. Os artistas lembram que, no início dos anos 2000, a centenária estátua foi furtada do jardim do casarão onde ficava exposta. Mais alguns metros de desenhos e muros e surge um dos aspectos mais curiosos da grande pintura, a ilustração do time do Santos, com sua escalação de 1957, quando os atletas deixaram Santos e jogaram naquele local contra o time da Nitroquímica, impondo uma sonora goleada por 10 a 3.

A chegada dos imigrantes japoneses, a construção da primeira mesquita, a vinda dos nordestinos, o primeiro terminal de ônibus, o primeiro grupo escolar, todos os fatos históricos estão ali registrados. Concentrada em observar um desses fatos estava Sandra Maria Vieira Gomes, de 50 anos, moradora do Jardim Helena, mesmo bairro da maior parte dos artistas que restauram as paredes.

Sandra, ao contrário da maioria dos apressados pedestres que pouco observavam o trabalho de restauro, parou e se emocionou com a arte. Entre um e outro registro fotográfico com seu celular, a supervisora de limpeza comentou, emocionada: “Isso é a minha história, acompanhei a evolução desse bairro. Presenciei a chegada dos nordestinos. Eu mesma cheguei aqui sonhando com uma vida melhor, de mais oportunidades. Aí você vê que não é nada disso. Por aqui, já fui de tudo um pouco, vendi água no trem, fui ambulante no Brás, trabalhei na estação”, relembra ela para, em seguida, resumir o trabalho dos artistas e historiadores de São Miguel: “Essas paredes realmente contam uma história”. A previsão de entrega do trabalho é nesta sexta, 25.

*Por Tiago Queiroz/Estadão