‘Me preparando para a terceira quarentena’: o relato de brasileiro resgatado de Wuhan

Alefy passando por teste para medir sua temperatura em Wuhan, para verificar se não estava com febre© Arquivo pessoal Alefy passando por teste para medir sua temperatura em Wuhan, para verificar se não estava com febre

Na pequena cidade mineira de São Pedro dos Ferros, de cerca de 7,7 mil habitantes, o estudante Alefy Rodrigues, de 26 anos, se tornou símbolo do novo coronavírus.

 “Em qualquer lugar que eu vou, as pessoas comentam comigo sobre esse assunto”, diz o jovem à BBC News Brasil.

Ele retornou à cidade natal há um mês. Não fazia parte dos objetivos de Rodrigues voltar para o município mineiro. Mas os planos dele, que fazia mestrado em uma universidade de Wuhan, na China, foram alterados pelo Sars-Cov-2, como é chamado oficialmente o novo coronavírus.

O jovem retornou ao Brasil no início de fevereiro, junto com um grupo de outros 33 brasileiros que estavam em Wuhan, primeiro epicentro do surto mundial do novo coronavírus.

Eles viajaram em dois aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) destacados para a Operação Regresso à Pátria Amada Brasil. O principal objetivo era retirá-los de uma área, na época, cada vez mais tomada pelo contágio.

No Brasil, os 34 passaram pouco mais de duas semanas em quarentena na Base Aérea de Anápolis, em Goiás.

Hoje, a China vê os casos do novo coronavírus reduzirem gradativamente — nesta semana, autoridades locais anunciaram que não havia registros de pessoas infectadas dentro do próprio país asiático, apenas doentes vindos do exterior.

Enquanto isso, o Brasil tem crescimento exponencial de pacientes com a covid-19, doença causada pelo Sars-Cov-2.

Até esta quinta-feira (19/03), o Brasil tinha 621 casos do novo coronavírus e sete mortes foram confirmadas. Especialistas afirmam que estes números refletem apenas o início do surto de Sars-Cov-2 no país.

Após as quarentenas na China e na base aérea de Anápolis (GO), Rodrigues afirma estar preparado para uma terceira. “Mas não posso negar que é muito frustrante sair de um lugar, fugindo de um vírus, e acabar atingido pelo mesmo problema em outro lugar. Porém, é preciso entender que, infelizmente, um vírus funciona assim.”

A vida na China

Formado em Secretariado Executivo, Rodrigues queria estudar fora do Brasil. Em setembro de 2018, se mudou para a China.

“Escolhi o país porque um amigo foi para a região de Wuhan durante o Ciência Sem Fronteiras (extinto programa de intercâmbios do governo federal) e me disse que era um bom local”, diz.

Junto com outros brasileiros que estavam em Wuhan, Alefy retornou ao Brasil em aviões da FAB© Arquivo pessoal Junto com outros brasileiros que estavam em Wuhan, Alefy retornou ao Brasil em aviões da FAB

Ele se manteve financeiramente na China, durante o período inicial, com o dinheiro do seguro-desemprego do trabalho que havia deixado no Brasil. “Paguei um curso de chinês em Wuhan, porque precisava aprender a língua”, relata.

Em setembro de 2019, conseguiu uma bolsa de estudos de mestrado na área de recursos humanos, em uma universidade de Wuhan. Em janeiro de 2020, terminou o primeiro período. Enquanto se preparava para viajar durante as férias, começou a ouvir sobre um vírus que estava infectando moradores da região.

“No início, não ficamos muito alarmados, porque sempre surgem novos vírus ou doenças. Não sabíamos muita informação sobre o assunto”, relata. Em meados de janeiro, ele começou a perceber a real dimensão do novo coronavírus.

“Em 23 de janeiro, as autoridades fecharam a cidade de Wuhan. Os meios de transporte foram suspensos. Naquele dia, eu iria viajar para Pequim, para aproveitar as férias, mas acabei impedido de sair de Wuhan”, narra.

Isolados na universidade

Por quase duas semanas, ele permaneceu em quarentena no campus da universidade, onde morava com dois colegas. “Começou como um isolamento voluntário. Mas depois se tornou algo obrigatório, para conter o avanço do vírus”, pontua.

Alefy e os colegas não podiam sair da universidade. A rotina se resumia a permanecer no apartamento deles.

“Não passamos fome. Todos os estudantes estavam muito unidos”, pontua. Ele não estocou muita comida.

“Havia um supermercado na região que abria a cada quatro dias, para que as pessoas pudessem comprar alimentos e itens de higiene”, revela o jovem. Ele relata que nenhum de seus conhecidos foi infectado pelo novo vírus.

O rapaz planejava estudar e fazer leituras diversas durante a quarentena. Porém, não conseguiu.

“Estar em casa durante a quarentena é estar em um lugar seguro, sem contato com outras pessoas. Mas acabei ficando muito ansioso, principalmente porque havia muita notícia falsa circulando nas redes sociais e isso me preocupava muito, porque nunca sabia o que era verdade.”

Quando soube que o governo brasileiro decidiu enviar um avião para resgatá-los de Wuhan — outros diversos países tomaram medidas parecidas —, o estudante ficou aliviado.

A volta ao Brasil

Na base aérea de Anápolis, Rodrigues conta ter passado por momentos tranquilos.

“Ficamos em um quarto individual bacana e comemos muita comida brasileira, que estávamos com muita vontade de comer. Nos sentimos amparados. Havia uma equipe médica muito capacitada”, relata.

Jovem passou duas semanas em base aérea de Anápolis, em Goiás© Arquivo pessoal Jovem passou duas semanas em base aérea de Anápolis, em Goiás

Os 34 brasileiros passaram 15 dias na base aérea. Em seguida, fizeram exames, que atestaram que nenhum deles havia contraído o novo coronavírus.

“Depois, fomos liberados e cada um voltou para casa”, relembra Rodrigues, que seguiu em direção à casa dos pais em São Pedro dos Ferros,

Na pequena cidade mineira, ele se transformou em referência sobre o novo coronavírus.

“Se vou, por exemplo, comprar açaí, alguém vem me perguntar algo sobre o assunto”, diz. Nos últimos dias, com o avanço dos casos no país, o tema se tornou ainda mais recorrente no município.

“A minha maior preocupação é que aqui na minha cidade há apenas um pronto-socorro. Assim como em muitos outros lugares do Brasil, há muito desamparo para a população”, diz.

Ele afirma que está apreensivo com o aumento de casos no país. “Conheci muitos profissionais sérios no Ministério da Saúde, enquanto estive na base aérea. Mas o problema é que estão subordinados a alguém que talvez não esteja tão preocupado assim com a situação”, diz, em referência ao presidente Jair Bolsonaro — o jovem cita o episódio em que o presidente se encontrou com manifestantes em um protesto no domingo (15), mesmo após o Ministério da Saúde ter recomendado que as pessoas evitassem aglomerações.

À espera da terceira quarentena

Nos últimos dias, Rodrigues intensificou hábitos de higiene como o uso de álcool em gel e tem lavado as mãos com muita frequência. “Também estou evitando contato muito próximo com as pessoas”, diz.

Com base na experiência que teve na China e na base aérea brasileira, ele costuma orientar conhecidos sobre a importância dos cuidados pessoais.

“Eu tento conscientizar pessoas próximas e conhecidos das redes sociais sobre esses cuidados. É importante falar sobre o assunto, porque muitas pessoas não acreditam o quanto isso é fundamental neste momento”, declara.

O Ministério da Saúde tem recomendado que as pessoas fiquem em casa, mas não há, até o momento, uma ordem expressa de quarentena — medida de restrição de movimentos em bairros, cidades, estados ou países, que podem culminar em punições em caso de descumprimento.

Quarto em que ficou durante a quarentena base aérea. Alefy afirma que local era confortável e tranquilo© Arquivo pessoal Quarto em que ficou durante a quarentena base aérea. Alefy afirma que local era confortável e tranquilo

Países como China e Itália recorreram à quarentena para evitar a propagação do novo coronavírus — o país mais recente a adotar a medida entre seus habitantes foi a Argentina.

“Acredito que o Brasil também vai adotar a quarentena. Já estou preparado”, afirma Rodrigues. O jovem relata que tem evitado sair de casa desde que aumentaram os casos de coronavírus no país.

Enquanto aguarda uma possível terceira quarentena, ele planeja o futuro. O jovem, que faz online algumas disciplinas do mestrado, planeja voltar para a China nos próximos meses.

As aulas presenciais na universidade dele devem retornar no fim de abril. “Mas ainda não há uma data oficial para isso. A China ainda está se recuperando. Há muitas pessoas em quarentena por lá até hoje.”

“Mas não sei se vou conseguir ir para a China no próximo mês. Tudo depende de como as coisas estarão por aqui”, comenta. O jovem afirma que irá esperar a situação do novo coronavírus melhorar no Brasil para que possa viajar.

“Acredito que meus professores da China entenderão a situação, porque é um problema mundial”, declara.

“Claro que me incomoda a possibilidade de ficar mais uma vez trancado. Mas sei que é uma situação fundamental para enfrentar o vírus. Além do mais, é importante estarmos com nossos pais e familiares neste momento. É importante conscientizá-los sobre a importância de não sair de casa e ter os cuidados necessários com a higiene”, declara.

BBC NEWS